Uma menina lava o cabelo em um poço ao amanhecer em uma pequena comunidade em Cabañas, El Salvador. A maioria das pessoas aqui não tem acesso a água corrente e deve chegar ao poço às 2h da manhã durante a estação seca. Mesmo que os políticos tenham prometido melhorias, eles ainda não viram nenhuma mudança. Foto: Jane Hahn.
O fornecimento de água no país está em risco, já que a regulamentação fraca, os serviços atrasados e a variabilidade climática alimentam uma crise complexa
À medida que o sol nasce através de uma espessa neblina matinal, Teresa Serrano se junta a outras mulheres de sua comunidade reunidas em torno de uma fonte natural aninhada nas colinas da região de Cabañas. Aqui, no remoto centro-norte de El Salvador, elas tomam banho, lavam roupa e preparam comida. Hoje, Serrano esperou até o amanhecer para buscar água, mas quando a seca atingiu seus piores níveis, ela e seus vizinhos passaram a ir a fonte ainda mais cedo.
Maria Alejandrino, 34 anos, e Teresa Serrano, 42 anos, encontram-se na mesma situação da maioria das pessoas em sua comunidade em Cabañas - elas precisam buscar água em um poço durante a estação seca. Alguns moradores construíram sistemas de encanamento improvisados para distribuir água. Foto:
Jane Hahn.
"O poço não produz muita água", diz ela. "E, quando secar, teremos problemas, pois as pessoas irão brigar".
Nas aldeias rurais de El Salvador, como a de Serrano, mais de 600 mil pessoas não têm acesso a água potável e centenas de milhares de pessoas vivem com acesso limitado ou intermitente. Embora a América Central seja rica em recursos hídricos, a pequena área de El Salvador, em relação ao tamanho da população, faz com que a queda no abastecimento anual de água per capita esteja perigosamente próxima da demanda. A incapacidade de regular adequadamente o uso da água no país também abriu as portas para a exploração excessiva e a poluição, enquanto a gestão fragmentada da água deixou os serviços em falta.
O Rio Pampe como está hoje. Em maio de 2016, nove mil galões de melaço foram derramados nos rios Pampe e San Lorenzo, matando a vida selvagem e contaminando o abastecimento de água para milhares de pessoas. Depois de dois processos judiciais e milhões de dólares em multas, o Ingenio La Magdalena efetivamente limpou a área do desastre, embora muitos moradores digam que ainda precisam ser compensados pelos danos causados aos seus meios de subsistência. Foto:
Jane Hahn.
O resultado é uma crise multifacetada de escassez de água, contaminação e acesso desigual que afeta um quarto da população do país, de 6,4 milhões de pessoas. Conforme as mudanças climáticas ameaçam colocar o país que mais sofre com falta de água na América Central em crise, alguns dizem que o resultado do debate sobre a gestão da água polarizada do país pode ser o eixo da viabilidade do futuro de El Salvador.
Nos últimos anos, os aquíferos da costa e do centro de El Salvador diminuíram em até 4 metros, uma tendência que a ministra do Meio Ambiente, Lina Pohl, classifica como extremamente alarmante. Enquanto isso, mais de 90% das fontes de águas superficiais do país estão contaminadas, de acordo com relatórios do Ministério do Meio Ambiente e Recursos Naturais.
Para piorar a situação, a água de nenhum dos principais rios do país pode ser purificada para beber através de métodos convencionais, como filtragem ou cloração. Especialistas dizem que as águas residuais não tratadas que jorram diretamente dos esgotos para os rios, bem como o escoamento da indústria e da agricultura, são as culpadas.
“Pessoas pobres tendem a consumir água contaminada de fontes naturais”, diz Andrés McKinley, especialista em água e mineração da Universidade Centro-americana José Simeón Cañas (UCA), na capital, São Salvador. “Quando a indústria de grande escala está localizada perto de comunidades pobres ou de baixa renda, seu uso excessivo de água de aquíferos subterrâneos deixa essas comunidades sem recursos hídricos adequados”.
McKinley diz que isso ocorre por conta dos desequilíbrios de poder na tomada de decisões historicamente que deram prioridade ao uso de água para as “grandes empresas”, como plantações industriais, empresas de mineração, empreendimentos habitacionais de luxo e empresas de engarrafamento.
La Constancia, uma subsidiária da ABInBev, por exemplo, enche milhares de caixas de Coca-Cola todos os dias em Nejapa, uma cidade situada no topo de um aquífero importante, enquanto a água flui apenas pelas torneiras dos moradores locais algumas vezes por semana, ou menos. O porta-voz de La Constancia, Raúl Palomo, atribui o problema à infraestrutura precária e diz que uma iniciativa de água potável lançada pela empresa em 2015 ajudou a reduzir os problemas de acesso à água.
Priscilla Pérez, 32 anos, mãe de quatro filhos, enfrenta a escassez, apesar de viver sobre um importante aquífero de Nejapa. “Não tivemos chuva suficiente para coletar água em oito dias”, disse ela à fotógrafa Jane Hahn em junho, um mês depois da estação chuvosa. “Gostaríamos que tivéssemos água saindo de uma torneira”.
De acordo com a Fundação Salvadorenha para o Desenvolvimento Econômico e Social (FUSADES), quase um quarto da população nas áreas rurais não tem acesso a água corrente em suas casas ou nas torneiras públicas. Mulheres e crianças são particularmente afetadas pela escassez, pois tendem a arcar com o ônus de transportar água para uso doméstico. Para aqueles que vivem em áreas controladas ou contestadas por gangues, buscar água de fontes remotas também os expõe a maiores riscos de roubo, estupro e outros ataques.
Os moradores da cidade também não estão imunes à crise da água. De acordo com Maria Dolores Rovira, chefe do departamento de engenharia de processos e ciências ambientais da UCA, a qualidade e a oferta de água são igualmente deficientes nos bairros pobres da capital, São Salvador. O aquífero Nejapa serve como fonte de água para a maioria da região metropolitana de São Salvador, e os danos aos tubos no início deste ano reduziram o serviço para mais de um milhão de pessoas por dias. Milhares de pessoas formaram filas para encher jarros em caminhões-pipa emergenciais, alguns de empresas privadas que cobravam pela água. Os desesperados moradores de bairros pobres saíram às ruas para protestar contra a má gestão e as deficiências do sistema atual.
Moradores como Carlos Melara, de 45 anos, que mora na comunidade de San Antonio Abad, nos arredores de São Salvador, temem que o desenvolvimento seja mais importante do que os lares pobres como o dele. Em junho, Melara carregava água de uma colina íngreme para a casa de sua família várias vezes ao dia. A menos de um quilômetro de distância, um dos maiores incorporadores imobiliários da América Central, o Grupo Roble, construía um enorme prédio com luxos como lavagem de carros, banhos para animais de estimação e piscina.
A América Central, um estreito istmo ladeado pelos oceanos Atlântico e Pacífico, deve ser duramente atingida por eventos climáticos extremos que deverão aumentar em severidade e frequência nos próximos anos. O Corredor Seco, propenso à seca da região, em particular, é uma das regiões mais vulneráveis do mundo para os desastres resultantes de mudanças climáticas, e cobre El Salvador. Isso inevitavelmente aumentará a pressão sobre os recursos hídricos cada vez mais escassos e altamente contaminados do país.
Pessoas com poucos recursos, que geralmente são menos resistentes em tempos de crise, muitas vezes acabam sendo as mais afetadas por esses desastres. Em 2014, por exemplo, a América Central sofreu uma seca recorde, deixando ao menos 96 mil famílias salvadorenhas sem alimentação adequada. Nesse mesmo ano, produtores de cana de açúcar salvadorenhos registraram safras recordes para exportação.
“Se quisermos enfrentar a mudança climática, primeiro precisamos ter uma governança forte”, diz Helga Cuéllar-Marchelli, diretora do departamento de estudos sociais da FUSADES. “Precisamos de um esforço conjunto do governo central, dos governos municipais, da sociedade civil e do setor empresarial. Se não houver um marco legal, será muito difícil coordenar esforços”.
Cuéllar-Marchelli defende uma abordagem integrada que leve em consideração a equidade social, a eficiência econômica e a sustentabilidade ecológica, de acordo com as melhores práticas internacionais. Isso significa tratar as bacias hidrográficas holisticamente, abordando não apenas a qualidade e quantidade da água, mas também as condições do solo e outros fatores ambientais que afetam o abastecimento de água.
A legislação sobre a água elaborada pelo partido governante Frente Nacional de Libertação Farabundo Martí (FMLN) estagnou na Assembleia Nacional de El Salvador por mais de uma década, em face da oposição de uma maioria de legisladores conservadores e alinhados aos negócios. A Lei Geral da Água, introduzida pela primeira vez em 2006, propõe um órgão regulador composto de várias instituições públicas para controlar a água como um bem público.
As Nações Unidas conclamaram El Salvador em 2016 a declarar a água como um direito humano em sua constituição e a preencher o vácuo regulatório aprovando a lei proposta sobre a água. E os defensores da lei obtiveram um ponto positivo quando El Salvador aprovou uma proibição histórica da mineração de metais no ano passado, celebrada como um movimento histórico para proteger a água limpa.
Mas, em 2017, o partido conservador Aliança Republicana Nacionalista (ARENA) apresentou uma contraproposta, com apoio do poderoso lobby de negócios do país. Esta Lei Abrangente da Água propõe um conselho alternativo de cinco membros com um representante do governo, dois do setor empresarial e dois da associação de municípios, que atualmente é dominada pela ARENA.
Para a ministra Pohl, a contraproposta representa uma tentativa de privatizar a tomada de decisões, que ela argumenta ser mais imprudente do que privatizar a prestação de serviços. “Em tempos de conflito e escassez, quando é necessário tomar decisões sobre alocação, deve haver critérios baseados no bem comum, não em entidades privadas”, diz ela.
McKinley concorda que um foco baseado em direitos é fundamental para orientar a legislação. “Se você reconhece a água como um direito humano, parece lógico aceitar o fato de que é o estado que tem a responsabilidade de gerenciar esse recurso para todos os cidadãos do país”, diz ele. A complexidade da crise da água exige participação ativa dos cidadãos e da sociedade civil, incluindo o setor privado, mas McKinley diz que isso deve ocorrer por meio de processos liderados pelo governo.
“Todas essas questões relacionadas à mudança climática ou a outras causas da crise da água em El Salvador continuam voltando para a falta de estruturas institucionais para regular a água”, diz ele. "A viabilidade de El Salvador como nação depende realmente do estado de seus recursos naturais, especialmente da água."
Fonte: National Geographic.