Page 30 - Uma Breve História da Legislação Florestal Brasileira
P. 30

Os Códigos Florestais e as vegetações nativas não florestais


               Atualmente, alguns juristas buscam estabelecer uma interpretação das normas florestais que
          eximiria os proprietários que desmataram no Cerrado e em outros biomas com vegetação nativa
          não florestal antes de 1989 de restaurarem as suas áreas. Esse argumento tem como base o artigo 68
          do atual Código Florestal (Lei n  12.651, de 2012), que será discutido nas próximas seções. Tal artigo
                                 o
          dispensa de adequação aos limites atuais os proprietários que desmataram legalmente, segundo a
          legislação vigente à época do desmatamento. Assim, são encontrados dois argumentos principais.
          O primeiro deriva da inclusão do termo Cerrado na legislação nacional somente em 1989, pela Lei
           o
          n  7.803. O segundo fundamenta-se em terminologias utilizadas pelos Códigos de 1934 e de 1965,
          como mattas, vegetação arbórea e florestas, visto que em algumas fitofisionomias brasileiras, seja
          no Cerrado, na Caatinga, no Pampa ou no Pantanal, pode não haver vegetação arbórea, como nas
          formações savânicas e campestres. Argumentam, dessa forma, que os requisitos de Reserva Legal
          não seriam aplicáveis a esse bioma, dados os termos, por exemplo, do artigo 16, alínea “a” do código
          de 1965, que segundo a citada interpretação apenas confere proteção aos 20% da propriedade com
          cobertura arbórea. Tais argumentos não procedem, apesar de terem ganhado fôlego em governos
          estaduais e entre especialistas ligados ao agronegócio.
               No primeiro caso, é importante lembrar que a definição dos biomas brasileiros é uma
          construção recente (Latour, 2001; Carvalho, 2015). As primeiras classificações que identificam
          em escala nacional os diferentes tipos de vegetação encontrados no Brasil remontam ao século
          XIX. Desde então, sucederam-se diferentes classificações, em que a Mata Atlântica (nas diferentes
          nomenclaturas) variou desde uma estreita faixa no litoral até vastas áreas no interior do país.
          Desse modo, foi somente no final dos anos 1980 que a divisão entre biomas, na forma atualmente
          conhecida, foi definida com base no mapa do IBGE, publicado em 1988, que mostra os tipos de
          vegetação brasileira no início do século XVI (Brannstrom, 2002; Castro in: Cabral e Bustamante,
          2016, p. 54-82). Isso indica que separar o Cerrado da Mata Atlântica, com base na legislação
          vigente em um período anterior ao estabelecimento da definição oficial dos biomas, seria um
          exercício anacrônico.
               Quanto ao segundo argumento, existem também evidências na própria legislação que
          desconstroem o argumento de que a exigência da Reserva Legal não se aplicava à vegetação natural
          não arbórea. De fato, o anteprojeto do código, publicado em 1931, deixava ainda mais clara a intenção
          dos legisladores de incluir todos os biomas brasileiros, ao explicitar que “para os efeitos deste Código,
          consideram-se equiparadas às florestas todas as formas de vegetação que sejam de utilidade às terras
          que revestem” . Contudo, o Código Florestal de 1934 indicava com relevo, como escopo, não só as
                    22
          “florestas como as demais formas de vegetação reconhecidas de utilidade às terras que revestem” (art.
          2 ) (Brasil, 1934). Sendo assim, até mesmo nas regiões de Caatinga do Nordeste, “assoladas pela seca”,
          o
          o Código de 1934 estabelecia a proibição da “derrubada das [vegetações] de folhagem perene como
                                                                          o
          o juazeiro, a oiticica e outras” (art. 29, alínea c). O mesmo ponto foi destacado no art. 1  do Código


          22  Diário Oficial (DO), de 23 de novembro de 1931, Seção 1, p. 8 e seguintes.



                                               28
   25   26   27   28   29   30   31   32   33   34   35